4.22.2009

crónicas de engate (5)

e se a vida for só isto?

Primeiro ele. Sabes onde é que está a minha camisa às riscas azuis? Pergunta e ela sabe. Está passada e num cabide do armário do quarto, responde. Depois os filhos. Um que quer o pequeno-almoço e outro que salta em cima do sofá da sala. E ela também sabe. Sabe que quantidade de leite deve aquecer para misturar com os cereais de forma a que o miúdo não diga "não gosto", sabe que não vale a pena gritar "não saltes no sofá", sabe que o lanche da escola é um pão sem sal com queijo para cada um. Mais um pacote de leite branco, repete para dentro.

Ele, o da camisa às riscas azuis, já saiu entretanto, perdido nessa repetição interior como se de um labirinto infinito se tratasse. Ela sabe-o porque as chaves do carro já não estão no cinzeiro da mesa da entrada nem o casaco, que ela pendura cuidadosamente todos os dias no cabide ao pé da porta, está lá. Ela sabe tudo. Na verdade, agora que pensa nisso, só não sabe porque é que um dia se apaixonou por ele e depois casou. Esqueceu-se.

Ele, o da camisa às riscas azuis, lembra-se agora que não se despediu dela. Agora que entrou no escritório em cuja janela o Sol insiste em nascer todas as manhãs e, da mesma forma mecânica que o Sol nasce, cumprimentou os colegas de trabalho cabisbaixos. Responderam todos um "bom dia" imperceptível, apenas para colmatar a obrigação do cumprimento. Ele, agora que pensa nisso, talvez seja o que anda a fazer da vida há muito tempo: colmatar a obrigação de respirar. Encosta a testa quente ao vidro frio da janela enquanto os colegas continuam cabisbaixos.

Ela suspira de alívio, interrompendo temporariamente a normal asfixia matinal. Ele já saiu e os miúdos também e ela, que sabe sempre o que eles precisam, percebe agora no embalo desse alívio que não sabe nada sobre ela própria. Nem sequer sabe porque é que não se lembra da última vez em que sorriu com vontade. Ela, que sabe sempre tudo, talvez não saiba viver. E se a vida for só isto? Pergunta-se. Depois assusta-se. E procura numa agenda amarelada um número de telefone que lhe saiba responder. Talvez uma amiga antiga, talvez um namorado antigo, talvez qualquer coisa antiga.

La fora parece que tudo e todos se aperceberam que sim, que a vida é só isto, e ele, enquanto desaperta involuntariamente o botão de cima da camisa com riscas azuis, contempla essa desistência da janela do escritório: um semáforo que muda de cor repetidamente, um cão que morde um saco de lixo, um homem que se fuma no banco triste dum jardim daninho e depois ela. Ela passeia-se rareando uma cor viva no cinzentismo da cidade. E vai com um homem... e vai sorrindo... e deixa-a ir. Se a vida for só isto é preciso vivê-la.

20 comentários:

Brid disse...

Tenho medo disto.

Ominona disse...

Muito bom ;) Será mesmo que a vida é só sito? quando iremos acordar? Será tarde demais?

Um abraço! :D

(Não te enganaste na etiqueta?)

Anónimo disse...

Bem... as vezes sinto-me assim, será que me conheço? A vida é tão mecanizada, ou vai-se para isto, ou vai-se para acolá. Infelizmente não se aproveita de forma correcta a vida, e essa está cada vez mais uma selva! Os hábitos e a rotina começam a vingar mais do que os sentimentos, das pessoas, das vontades e á vontades, e sempre se diz " não tenho tempo", " não sei", "não posso", e adiamos sempre a possibilidade de saber e sentir o que é realmente a vida. As pessoas relembram mais as coisas negativas do que as positivas. Não é a toa que em marketing diz-se que a opinião de um cliente insatisfeito é passada para mais pessoas e com maior eficácia, do que de um cliente satisfeito. Podem perguntar agora o por quê de ter dito isto agora, e a minha resposta é não sei! :S Será que temos que saber sempre tudo de antemão para vivermos a vida?


perderunskilos.blogspot.com

Olga disse...

O desânimo com a vida não serve de desculpa para a mentira e a traição.

maestrina disse...

moral da história: nunca confiar em homens com camisas de riscas azuis, nem em mulheres que fumam homens...

Anónimo disse...

A única reflexão que me vem é...

Não me contento com a vida sendo somente isto.

Um beijo!

Cherry disse...

Esses pensamentos já me tinham passado pela cabeça e recusei-me simplesmente a deixar passar a vida por mim... eu decidi vive-la ao máximo a cada dia que passa. Sorrir, amar, correr, chorar, suspirar... De outra forma, não sei ser feliz.

Anónimo disse...

Às vezes, esquecemo-nos de viver e limitamo-nos apenas a existir, a ser um corpo presente quando a alma e o coração já há muito que viajaram para longe...

Carlinha disse...

E se a vida for só isto, perdemos com toda a certeza a essência da nossa alma... perdemos o sentido de tudo aquilo que nos trouxe aqui... perdemos, por fim, a magia da nossa existência...

Bichana disse...

Quantas vezes me questiono se a vida é só isto... a grande maioria das pessoas vive assim!
Eu horrorizo-me a pensar que um dia poderei ter esse tipo de vidinha...
Muito bom o teu post!

Ivar C disse...

joli, ter medo disto é bom... a sério que é. é quem tem medo que consegue mudar de vida quando isto acontece. :)

ominona, não me enganei não. sei que pode parecer mas é de propósito. ::

pedaços de mim, não temos que saber tudo de antemão, antes pelo contrário. o bom é nunca saber. :) ah! e o "se fuma" é de propósito. :)

olga, eu tenho uma noção de traição um pouco diferente... e para ser sincero nem sei bem se aqui há essa traição que pensas... :)

maestrina, lol. :)

giovana, nem eu... nem eu... :)

cherry, boa. :)

anNa, exactamente. :)

carlinha, felizmente que podemos sempre procurar aquilo que já perdemos. :)

bichana, obrigado. tu é que podes fazer alguma coisa para que isso não se passe contigo. :)

Sendyourlove disse...

...é a **** da rotina...
Mas ter demasiado medo dela e fugir a sete pés também não é uma vida bem vivida...
È o meio termo que insistimos em não achar.

Cristina Silva disse...

Luto diariamente, com todas as minhas forças, contra isto.
Descrição crua mas verdadeira do que a nossa vida se pode tornar.
Abraço

Anónimo disse...

Cara...

É mesmo um fenômeno mundial. Eu que pensei que só acontecesse nos países subdesenvolvidos...

Que coisa mais estranha.

Sandra disse...

A vida é "só" aquilo que deixarmos que ela seja... não é cliché, podemos mesmo mudar a nossa vida quando nos quisermos - há prós e contras verdade - mas tudo depende somente da nossa vontade.
Em relação um pouco a esta historia em particular: não se deve viver para os outros (nunca!) - mas sim deve-se viver com os outros...
Mais um post excelente :)
S.

Ivar C disse...

send your love, é mais (ou menos) do que a rotina. Há rotinas boas, acho eu... :)

cristina silva, luta mesmo a sério, então. :)

giovana, do Sudão à Noruega, creio que esta questão não será muito diferente... :)

PinkCat, eu também acho que sim, que podemos... mas ás vezes não o fazemos. :)

Olga disse...

Um texto, tal como um quadro ou uma escultura permite a quem lê criar a sua própria interpretação resultante da conjugação entre as palavras do escritor e das experiências do leitor. :)

Ivar C disse...

olga, concordo. aliás... é por isso que gosto de ler. :)

Eyes of China Blue disse...

A partir de uma determinada altura, a vida é mesmo só isto. É esta frieza de análise e a aceitação deste facto que nos permite ver as pequenas coisas que lhe estão por trás, todas as pequenas coisas que se escondem, e que fazem com que 'só isto' valha a pena ser vivido.

Belíssimo texto, não consegui não comentar. Parabéns pelas palavras e 'imagens'!

Ivar C disse...

eyes of china blue, obrigado. pela presença e pela simpatia. :)