3.07.2018

de onde é que eu sou?

Ela perguntou-me de onde sou enquanto fazia o troco da pint de Guiness que acabara de me servir. Não que eu me importe de responder a essa pergunta, até porque sei que normalmente serve apenas para dizer qualquer coisa quando não se tem nada mais para dizer, mas fiquei em silêncio durante algum tempo por não saber exactamente o que responder. Foi a primeira vez que hesitei perante a pergunta do costume. Pensei que talvez não já não saiba exactamente de onde sou.

Desviei o assunto e disse-lhe que não sou um grande adepto da grande maioria das cervejas britânicas que tenho experimentado. Normalmente parecem-me demasiado parecidas com água, talvez pelo facto de quase não terem gás e o teor de álcool médio ser bastante baixo. Com excepção da Guiness, claro, que é mais consistente e por isso bebo sempre com prazer.
Para além de nós e de um grupo de quatro homens silenciosos esquecido numa mesa com copos vazios, não havia mais ninguém. Olhei à minha volta e pareceu-me que o silêncio do pub estava ali há pelo menos cem anos. Talvez tenha entrado uma vez há muito tempo para se esconder do ruído das ruas de Newcastle Under Lyme e nunca mais tenha tido a coragem de sair. Entretanto o tempo passou lá fora, mas não lá dentro.
Só podia ser essa a explicação para o que estava a acontecer: o respeito pelo silêncio secular. A mesma mulher que me perguntara de onde sou, sem obter uma resposta concreta, preparava-se agora para dizer algo mais mas as palavras não lhe saíam da boca. Era como se fossem a massa de um bolo que teima em não crescer no forno.
Pousou algumas moedas junto à minha cerveja, uma por uma, e depois tornou a olhar-me nos olhos. Agradeci-lhe e devolvi o olhar. Era bonita, talvez com mais uma dezena de anos do que eu, mas o que mais lhe notei foram os gestos. Não pertenciam ao seu corpo, isto é, eram joviais mas vinham de um corpo que estava provavelmente a fazer quase sessenta anos de existência. Eram leves, certos e delicados, traídos apenas de vez em quando por um curto tremer dos lábios.
Quando percebi que talvez estivesse a ser demasiado invasivo, tornei a permitir que os meus olhos esvoaçassem por aquele local sepulcral. Uma das fotografias na parede representava o rosto de alguém que, devido à evaporação duma boa parte dos sais de prata do papel fotográfico e do seu tom amarelecido, mais parecia um fantasma. As madeiras das paredes revelavam um esforço contínuo para suportar o peso do edifício e a luz do Sol varria lentamente o espaço.
Quando olhei para a porta da entrada, a mesma mulher que me servira a cerveja que ainda ia a meio entrava com um ar rejuvenescido. Eu, que nem tinha percebido que ela saíra, limitei-me a pensar que agora sim, os seus gestos e movimentos lhe pertenciam totalmente.
Tirou uma half pint para ela, não de Guiness mas duma outra cerveja qualquer, e brindou com o meu copo em repouso no balcão. 

- Cheers! - disse.

Sorri-lhe.
Aquela mulher está ali há quase tanto tempo quanto o da vida dela. As viagens que fez foram sempre através dos seus clientes, esses de quem ela acaba por se esquecer de onde vieram ou para onde foram e depois os outros, aqueles que se repetem todos os dias num qualquer escaninho do bar. O facto de eu não lhe ter dito de onde sou despertou algo nela por um momento. Talvez a importância de quem, como eu, ali passa de vez em quando para beber um copo e troca duas ou três palavras com ela.
O que ela despertou em mim, certamente, foi recuperar a importância por um momento perdida de saber de onde sou.
Não foi ela que me disse. Foi o silêncio.



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